Da guarda municipal ao paradoxo da guarda armada
Lúcio Alves de Barros*
Mais um grande passo rumo a policialização ou - tanto faz - a emergência, desenvolvimento e maturação do Estado Penal. É mais do que perceptível (aos olhos atentos) o aumento do poder de força do Estado em detrimento de ações sociais e humanas. No dia 21 de junho de 2010, o Prefeito de Belo Horizonte assinou o famoso convênio com a Polícia Militar de Minas Gerais no intuito de possibilitar as guardas municipais a utilizarem armas de fogo. Serão aproximadamente 1850 guardas armados. Obviamente, nem todos estarão a trabalho, mas são quase duas mil pessoas a mais portando armas e, a despeito dos treinamentos da PMMG, com pouco ou muita coisa na cabeça.
A questão aparentemente é simples, pois tanto o prefeito Mario Lacerda (PSB) como o superintendente da Polícia Federal em Minas Gerais, Jerry Antunes de Oliveira, parecem se apegar ao medo social e ao pânico do sempre crescente “aumento da criminalidade” para justificar tal medida. No discurso do pânico, é óbvio que esta decisão passaria despercebida em sua extensão e magnitude. Todavia, o convênio não deixa de ser preocupante. Em primeiro, já se sabe que se as leis fossem realmente seguidas neste país não precisaríamos da Guarda Municipal, a qual continuaria como matéria constitucional de 1988 (Carta Magna, em seu artigo 144, § 8º). Em segundo, a ideia de uma “Guarda Municipal Civil” não surgiu assentada no uso ostensivo da força, tampouco da arma.
As armas de fogo, por natureza e definição, já são elementos de distinção e de repressão. Não é preciso muito para que elas obtenham os devidos efeitos. Um homem armado vale mais ou menos em força o número de projéteis que a arma carrega. Se somarmos os que provavelmente estarão no cinto, no bolso e na “máquina” do companheiro de trabalho teremos mais força ainda. Sem mencionar sobre a possibilidade da disseminação da prática em portar outra arma não legitimada pelo Estado. Esta prática é prato cheio para a entrada de novas armas, as ilegais, as quais na possibilidade de uso serão as preferidas. Sabe-se que elas escamoteiam as ações e abrem espaço para a dúvida, a corrupção e a impunidade.
A questão é séria e o senso comum nem faz ideia. Os guardas municipais têm por função assegurar a proteção dos bens, serviços e instalações do município, que, por várias vezes, tem seus equipamentos (postos de saúde, parques e escolas) atacados por vândalos e recalcitrantes. Mas este problema não justifica o uso de armamento. A arma em si, pode lá ter os seus efeitos, mas a atividade ostensiva da Guarda Municipal que já anda bem municiada com cacetetes, rádios, armas não-letais de choque e viaturas, não vai alterar muita coisa a não ser a possibilidade de uso e de alguns desastres como já aconteceram em São Paulo e no Rio de Janeiro.
O uso do armamento (revólveres e pistolas) das Guardas Municipais aponta, inclusive, para uma outra possibilidade: a incompetência da Polícia Militar na manutenção da paz e da ordem pública. Um paradoxo, pois a Polícia Militar é a responsável pelo treinamento destas guardas. Creio que vamos assistir a muitos desvios de função e, de quebra, conflitos e crises de atribuições. Um homem com uma arma é um poder móvel e perigoso e a possibilidade do seu uso em tempos de medo e pânico sem fim deixa um certo mal-estar.
Não é uma boa justificar o uso das armas com base em treinamentos oriundos da PM. Toda política de segurança pública deve, por princípio, partir da prevenção e já é de conhecimento público que a nossa polícia ainda teima em agir na repressão, na "polícia do depois” e na ação voltada para resultados. Os próprios executivos de polícia já sabem do fato de que a maioria das atividades que a polícia faz é de caráter social, terapêutico e assistencial. A Guarda Municipal, a priori, deveria atuar em tais conjunturas, liberando a polícia estatal para assuntos mais urgentes como o da investigação de crimes e repressão da criminalidade desorganizada e capaz de desenvolver anomias sociais.
A natureza da atividade da Guarda Municipal não comporta o uso de armas. Pelo contrário, sua pedagogia é a do diálogo e da conscientização dos recalcitrantes sobre a importância da manutenção e preservação dos equipamentos públicos. Dito de outra forma, em tempos de democracia recente e firme, suas atividades deveriam ser educativas e não punitivas.
De qualquer forma, a política municipal de segurança pública, distante da política criminal do Estado, navega no sentido das armas, esquecendo que um dois princípios do trabalho dos policiais militares é o uso da força legítima em ações discricionárias. Não deve ser por acaso que os soldados da PM fazem curso técnico em segurança e são mais ou menos controlados pelo poder executivo, pela organização e pela justiça militar. Apostar em armas é atirar no próprio pé ou nos pés dos outros. Façamos torcidas para que a “prefeitura armada” não acerte os pés dos cidadãos.
***
* Mestre em Sociologia, doutor em Ciências Humanas: sociologia e política pela UFMG. Autor do livro, “Fordismo: origens e metamorfoses”. Piracicaba: Ed. UNIMEP, 2004; organizador das obras “Polícia em Movimento”. Belo Horizonte: Ed. ASPRA, 2006 e “Mulher, política e sociedade”. Brumadinho, MG: Ed. ASA, 2009
Mais um grande passo rumo a policialização ou - tanto faz - a emergência, desenvolvimento e maturação do Estado Penal. É mais do que perceptível (aos olhos atentos) o aumento do poder de força do Estado em detrimento de ações sociais e humanas. No dia 21 de junho de 2010, o Prefeito de Belo Horizonte assinou o famoso convênio com a Polícia Militar de Minas Gerais no intuito de possibilitar as guardas municipais a utilizarem armas de fogo. Serão aproximadamente 1850 guardas armados. Obviamente, nem todos estarão a trabalho, mas são quase duas mil pessoas a mais portando armas e, a despeito dos treinamentos da PMMG, com pouco ou muita coisa na cabeça.
A questão aparentemente é simples, pois tanto o prefeito Mario Lacerda (PSB) como o superintendente da Polícia Federal em Minas Gerais, Jerry Antunes de Oliveira, parecem se apegar ao medo social e ao pânico do sempre crescente “aumento da criminalidade” para justificar tal medida. No discurso do pânico, é óbvio que esta decisão passaria despercebida em sua extensão e magnitude. Todavia, o convênio não deixa de ser preocupante. Em primeiro, já se sabe que se as leis fossem realmente seguidas neste país não precisaríamos da Guarda Municipal, a qual continuaria como matéria constitucional de 1988 (Carta Magna, em seu artigo 144, § 8º). Em segundo, a ideia de uma “Guarda Municipal Civil” não surgiu assentada no uso ostensivo da força, tampouco da arma.
As armas de fogo, por natureza e definição, já são elementos de distinção e de repressão. Não é preciso muito para que elas obtenham os devidos efeitos. Um homem armado vale mais ou menos em força o número de projéteis que a arma carrega. Se somarmos os que provavelmente estarão no cinto, no bolso e na “máquina” do companheiro de trabalho teremos mais força ainda. Sem mencionar sobre a possibilidade da disseminação da prática em portar outra arma não legitimada pelo Estado. Esta prática é prato cheio para a entrada de novas armas, as ilegais, as quais na possibilidade de uso serão as preferidas. Sabe-se que elas escamoteiam as ações e abrem espaço para a dúvida, a corrupção e a impunidade.
A questão é séria e o senso comum nem faz ideia. Os guardas municipais têm por função assegurar a proteção dos bens, serviços e instalações do município, que, por várias vezes, tem seus equipamentos (postos de saúde, parques e escolas) atacados por vândalos e recalcitrantes. Mas este problema não justifica o uso de armamento. A arma em si, pode lá ter os seus efeitos, mas a atividade ostensiva da Guarda Municipal que já anda bem municiada com cacetetes, rádios, armas não-letais de choque e viaturas, não vai alterar muita coisa a não ser a possibilidade de uso e de alguns desastres como já aconteceram em São Paulo e no Rio de Janeiro.
O uso do armamento (revólveres e pistolas) das Guardas Municipais aponta, inclusive, para uma outra possibilidade: a incompetência da Polícia Militar na manutenção da paz e da ordem pública. Um paradoxo, pois a Polícia Militar é a responsável pelo treinamento destas guardas. Creio que vamos assistir a muitos desvios de função e, de quebra, conflitos e crises de atribuições. Um homem com uma arma é um poder móvel e perigoso e a possibilidade do seu uso em tempos de medo e pânico sem fim deixa um certo mal-estar.
Não é uma boa justificar o uso das armas com base em treinamentos oriundos da PM. Toda política de segurança pública deve, por princípio, partir da prevenção e já é de conhecimento público que a nossa polícia ainda teima em agir na repressão, na "polícia do depois” e na ação voltada para resultados. Os próprios executivos de polícia já sabem do fato de que a maioria das atividades que a polícia faz é de caráter social, terapêutico e assistencial. A Guarda Municipal, a priori, deveria atuar em tais conjunturas, liberando a polícia estatal para assuntos mais urgentes como o da investigação de crimes e repressão da criminalidade desorganizada e capaz de desenvolver anomias sociais.
A natureza da atividade da Guarda Municipal não comporta o uso de armas. Pelo contrário, sua pedagogia é a do diálogo e da conscientização dos recalcitrantes sobre a importância da manutenção e preservação dos equipamentos públicos. Dito de outra forma, em tempos de democracia recente e firme, suas atividades deveriam ser educativas e não punitivas.
De qualquer forma, a política municipal de segurança pública, distante da política criminal do Estado, navega no sentido das armas, esquecendo que um dois princípios do trabalho dos policiais militares é o uso da força legítima em ações discricionárias. Não deve ser por acaso que os soldados da PM fazem curso técnico em segurança e são mais ou menos controlados pelo poder executivo, pela organização e pela justiça militar. Apostar em armas é atirar no próprio pé ou nos pés dos outros. Façamos torcidas para que a “prefeitura armada” não acerte os pés dos cidadãos.
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* Mestre em Sociologia, doutor em Ciências Humanas: sociologia e política pela UFMG. Autor do livro, “Fordismo: origens e metamorfoses”. Piracicaba: Ed. UNIMEP, 2004; organizador das obras “Polícia em Movimento”. Belo Horizonte: Ed. ASPRA, 2006 e “Mulher, política e sociedade”. Brumadinho, MG: Ed. ASA, 2009
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